segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

GESTÃO E ECONOMIA: NO OLHAR DO DISCIPULO MISSIONÁRIO CALABRIANO

A sociedade humana em certo momento da história tomou o caminho que conduziu o homem a exercer um sistema de poder vertical e de dominação. Esse sistema vertical concebe o poder como uma relação que transforma diferença em separação; utiliza a tecnologia para dar origem a uma tecnocracia, isto é, para dominar e controlar. A tecnologia, usada para o domínio, criou uma nova dinâmica interativa entre todos os elementos da natureza e os seres humanos. Essa concepção de vida levou a uma quebra da unidade psíquica do individuo a qual estabeleceu outro tipo de relações baseada na contraposição, dando origem a sociedade patriarcal, autocrática, hierárquica e burocrática.

Podemos afirmar que na modernidade até nossos dias, essa concepção é reforçada com doutrinas que concebe o individuo como seres que agem movidos pelo seu próprio interesse, de forma utilitarista e egoísta. Prova disso, é o fato que, com relação aos bens materiais, nos países com capital mais adiantado, essa concepção de individuo foi tão forte que a organização econômica e social chama-se capitalista. Na sociedade capitalista é o poder econômico que decide nas opções políticas, nas decisões administrativas e financeiras. É ele que é chamado para resolver as tensões sociais e em muitas circunstâncias justifica o conflito e a guerra. Essa forma de agir e pensar social não é inato no homem, não é natural; ele foi produzido de forma racional e inserido na sociedade por meio de mecanismos artificiais[1].

Na esfera da gestão e da economia, a concepção de indivíduo que age por interesse, egoísmo e utilitariamente, cria métodos e ferramentas de gestão que reforça esse estado de coisa que a Obra Calabriana objetiva combater para estabelecer uma relação baseada na fraternidade e no espírito de família. Dessa forma não podemos aplicar essas ferramentas de gestão sem adaptá-las aos princípios filosóficos da atividade que conduzimos, a qual não é aquela do individualismo, da concorrência, da propaganda e do acumulo.

Ademais, o documento do Concilio Vaticano II “Gaudium et Spes”, reforça essa idéia, quando afirma que a perturbação da hierarquia dos valores, causada por um sistema que leva os indivíduos a pensarem somente para seus interesses e não nos dos outros, leva o mundo a não ser mais um lugar de verdadeira fraternidade; mas induz a um crescimento do poder humano que ameaça de destruir a própria humanidade. Afirma ainda, que esse modo de agir é um pecado que cria uma grande ferida na Igreja e na sociedade[2].

Igualmente, a filosofia e a espiritualidade calabriana, possuem uma forma de ver a Gestão e a Economia bem diferente do modo de ver e agir do sistema dominante contemporâneo. São João Calábria dizia que a Obra é uma árvore com as raízes para cima, não com as raízes na terra, isto é, unicamente nos bens. Na espiritualidade calabriana é a Providência Divina a idéia teológica que norteia toda a ação das pessoas e da Organização. São João Calábria sempre colocou todas as garantias e preocupações nas mãos dessa boa Mãe que se preocupa com todos. Para ele a garantia está na busca do bem e que Deus proverá o restante, inclusive os bens materiais[3]. Se na vida conseguimos viver em profundidade a inspiração evangélica recebida de Deus por São João Calábria sobre a Providência, poderemos nos afastar das contradições que nos proporcionam os sistemas sociais e econômicos que nos apresentam a sociedade de hoje. Sistema esse, que muitos o consideram como único caminho para resolver as situações econômicas, e assim o multiplicamos em nossas Organizações iludidos que dessa forma a atividade alcançará sucesso.

São João Calábria, possui uma posição clara com relação à segurança econômica. A segurança econômica da Organização está na confiança em Deus Pai Providente, como está explicitado nas constituições da Congregação: “A congregação não pode possuir bens imóveis, exceto aqueles necessários para o livre desenvolvimento de suas atividades. Assim também não pode acumular dinheiro ou bens de outro gênero com o objetivo de obter lucros e criar seguranças humanas: tudo aquilo que a Providência enviar, será gasto pelos pobres que o Senhor nos confia ou usado na caridade para com os necessitados”.

Por outro lado, abandono não é sinônimo de não fazer nada ou deixar o aspecto econômico e de gestão andar de qualquer jeito, sem planejamento, sem previsão. Ele costumava dizer frequentemente que “a primeira providência é a cabeça no pescoço”. Claro que com isso Calábria não queria dizer que deveríamos usar os meios econômicos de forma “inteligente”, “esperta”, “ter cabeça...” como nos sugere o sistema econômico vigente para obter mais lucro. Bem ao contrário, para ele “ter cabeça...” significava se perguntar o que Deus queria dessa atividade, o que Deus queria dizer sobre a situação que se apresentava. Ele buscava entender a vontade de Deus através de dois caminhos; de um lado rezando e pedindo a Providência do Pai, por outro lado procurando ouvir as pessoas ao seu redor e partilhando com os demais, como fazia constantemente com seu orientador espiritual[4].

Essa forma de agir Evangélica de São João Calábria, é uma posição que está completamente na contramão da sociedade contemporânea que, como abordamos acima, coloca as garantias de continuidade das Organizações no investimento material, no lucro e na capacidade com que se utilizam as ferramentas de gestão ou onde desponta a figura do coordenador como “meneger”, do chefe, do que manda, do realizador de grandes projetos.

Viver a espiritualidade calabriana com relação à gestão e a economia é um enorme desafio, no sentido que precisamos colocar o humano, como figura de Cristo, acima do econômico. O humano, em caso de urgência, tem prioridade inclusive quando os projetos já extrapolaram sua capacidade de atendimento. Nesse sentido, é muito iluminador o escrito de São João Calábria ao Pe Stanislao quando este foi lhe pedir ajuda para manter a atividade que conduzia. Não dispondo de meio econômico para enviar e tendo uma emergência humana para atender, São João Calábria não excitou em escrever ao coordenador da casa e resolver a situação da seguinte forma: “Aqui a Providencia nos prova em grau Maximo. É por isso que, não tendo outra coisa para te mandar, te mando esta pobre criatura, [um menino órfão], que custa o Sangue de um Deus. Receba-o no seu nome e por seu amor, e a casa adquirirá uma mina”. Podemos entender que na espiritualidade calabriana a sustentabilidade econômica da atividade ocorre a partir da pessoa pobre que atendemos e não dos meios econômicos que a atividade possui.
O paradoxo do agir calabriano com o sistema econômico e de gestão atual é claro em outra expressão que São João Calábria muitas vezes repetia: “A obra será grande se for pequena, será rica se for pobre, terá a proteção de Deus se ficar longe da busca de proteções humanas”[5] . Como podemos observar, não resta duvida que o desafio de hoje seja integrar a nossa fé na Divina Providência com a atividade que desenvolvemos na área da gestão e da economia.

Geralmente é bem mais fácil entendemos a Divina Providência quando possuímos bens; inclusive costumamos agradecer a Deus, em nossas orações, quase sempre pelos bens materiais que recebemos; enquanto que é bem mais difícil admitirmos a presença da Providência nos momentos que passamos por privações. Nos momentos de provação também Deus quer falar. Por esse motivo que quando faltavam meios econômicos em uma casa, São João Calábria, pedia que se fizesse um sério exame de consciência para verificar se a vida pessoal e a atividade estavam sendo conduzidas segundo os planos de Deus. Nos momentos de dificuldade econômica da missão que conduzimos é o momento de humildemente nos perguntar o que Deus quer nos dizer ou o que está nos alertando.

Para Maggioni (2005), na sociedade de hoje, muitos procuram servir a Deus e ao dinheiro. Acreditam que é possível simultaneamente servir a Deus e ao dinheiro por que para eles a riqueza é uma benção de Deus, uma “providência” Divina. Nesse caso, a posse de bens econômicos é uma recompensa pelo seu próprio “esforço”. Para as pessoas que pensam dessa forma a riqueza é uma questão de “justiça” Divina. Outros, ainda acreditam que através do sucesso de suas obras, do emprego de métodos científicos de gerenciamento, atividade desenvolvida com mais eficiência, a observância das leis, darem ofertas e fazer “caridade”, são suficientes para glorificar a Deus. Para essas pessoas possuir mais e mais bens, significa que estão com a graça de Deus, e as riquezas para elas tem um sentido até de ajudar os demais. Para o autor, porém, “Uma glória de Deus pensada assim pode tranquilamente coexistir com a riqueza, inclusive a riqueza constitui uma oportunidade. Mas um Deus assim, não é o de Jesus Cristo”[6].

As palavras, “Não vos angustieis” (Mt 6, 25), muitas vezes lembrado por São João Calábria, nasce da necessidade de libertar o individuo da ilusão de se encontrar segurança em coisas que não podem oferecer segurança. “Angustiar-se”, significa estar ansioso, agitado; significa uma profunda falta de fé e confiança em Deus Pai\Mãe Providente. Essa forma de pensar e de agir, não é conveniente para quem quer viver dentro de uma visão cristã, é um modo errado de se relacionar com as coisas, com a vida e com Deus[7].

A idéia teológica da Divina providência, vivido e testemunhado por São João Calábria, se coaduna com o pensamento que defende que antropologicamente o indivíduo é na sua essência um ser social. O social é entendido aqui, como uma esfera emergente em constante formação e transformação, e sua estrutura depende de cada um dos atores em um constante processo de participação e aprendizado. Neste caso o social está conformado por grupos sociais, por regras sociais e por praticas especificas dentro desses grupos. Desta forma, o ser humano é conduzido por uma tendência natural e por que não Divina para a cooperação e não para a concorrência, pelo egoísmo e pelo próprio interasse.

Com essa concepção de individuo, podemos sonhar com uma sociedade, onde os ritmos da vida humana voltem ter os elementos naturais que Deus colocou em cada um e os quais realizam o homem. Esses elementos se expressam através de gesto de solidariedade, impulsionado pelo principio da fraternidade. Além do mais, podemos esperar que os frutos destes elementos que Deus nos constitui é o poder exercido de forma cíclica e horizontalizado, as decisões tomadas por todos os participantes. Esse valor transformado em vida proporciona o crescimento da comunidade, a concretização de relações de parcerias e formam verdadeiras redes sociais e fraternas.

Podemos afirmar que na pratica da gestão e da economia, esses valores humanos se traduzem no método da economia solidária, do principio da economia social, do trabalho em rede, do trabalho em parceria com outras organizações e de decisões tomando de forma colegiada. Além do mais, na esfera da gestão e da economia, podemos afirmar que se essas iniciativas não são complementares a espiritualidade calabriana, também não é contra.

As Organizações Civis Solidárias, como as que atuamos e que tem em sua bandeira o propósito da ação solidária, possuem uma missão fundamental para a sociedade contemporânea. Ou seja, a missão de criar relações interna e externa que proporcione segurança, confiança e reconhecimento mutuo; resgatar nas pessoas o gosto de estarem juntas, de criarem comunidades e de se relacionar como uma verdadeira família em busca da igualdade de direitos fundamentais para o desenvolvimento e a preservação da vida. Enfim, nós como discípulos missionários, atuando na gestão e na economia, somos chamados a mostrar para o mundo que um outro caminho é possível para a construção de uma sociedade desenvolvida e ao mesmo tempo fraterna, a solidária e de paz.

[1] Augusto De Franco, 2001. Capital Social. Leituras de Tocqueville, Jacobs, Putnam, Fukuyama, Maturana, Castells e Levy. Instituto de Politica Millennium, Brasilis – DF.

[2] Gaudium et Spes, 37. Compêndio do Vaticano II, Ed. Vozes.

[3] Leitura Teológica do “Buscai Primeiro...” Em Pe. João Calabria. Estudos Calabrianos, 1999. Porto Alegre – RS.

[4] Pe. Pedro Cunegatti, “O vosso Pai Sabe...” Breve perfil da espiritualidade calabriana. Estudos Calabrianos, 2001. Porto Alegre – RS.

[5] São João Calabria, Carta aos Religiosos, Carta L, Pentecostes – 25 de Maio de 1947.
[6] Maggioni Bruno. Dinheiro, Evangelho, Providência. Estudos Calabrianos, 2005. Porto Alegre – RS.

[7] Leitura Teológica do “Buscai Primeiro...” Em Pe. João Calabria. Estudos Calabrianos, 1999. Porto Alegre – RS.